Aos 80, Jards Macalé renova a MPB em um dos melhores álbuns do ano
(FOLHAPRESS) – Nos anos 1980, Jards Macalé tocava em lugares remotos e improváveis. Em shows de voz e violão, costumava fazer uma cirúrgica versão do “Hino Nacional”. Ao completar 80 anos, em forma, o compositor carioca lança “Coração Bifurcado”, álbum como há muito não se via na música popular brasileira.
Em seu “Hino Nacional”, cantado a sério, com a letra intacta -era memorável como dizia “se o penhor dessa igualdade/ conseguimos conquistar com braço forte/ no teu seio/ ó liberdade/ desafia o nosso peito a própria morte”-, a estrela era o violão: Macalé domina o canto acompanhado de João Gilberto e a levada de João Bosco, mas os desestabiliza com o blues rasgado e o rock. Enche a bossa nova de vidro e corte.
Cinquenta anos após o LP “Banquete dos Mendigos”, de 1973, “Coração Bifurcado” é um disco sobre os amores do amor. Mesmo que o amor seja a medida das coisas que são e das que não são, como na faixa final, “Cante”, na qual proclama que “a melhor coisa do mundo além do amor -como o amor- é cantar”.
A arte de Macalé nunca recusou a sujeira, e por isso destoa tanto do mundo sonoro limpinho e asseado do século 21, e era natural que ele se encontrasse com músicos mais jovens de mesmo DNA, como o baterista e percussionista Thomas Harres, o guitarrista, cavaquinista e percussionista Rodrigo Campos, o guitarrista Guilherme Held e o baixista Pedro Dantas.
Entre os parceiros estão o próprio Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Clima, Romulo Fróes, Alice Coutinho, José Carlos Capinan e Ronaldo Bastos. O amor reúne forças para se bifurcar.
Desde os primeiros compassos, baixo, bateria e guitarra distorcida já levam a sonoridade do álbum a algum lugar ausente dos anos 1970. Sua voz não tem a limpidez do início da carreira. É profunda, grave, escura, com gosto para desaguar em “drives” de inspiração guitarrística no final das frases. O “Amor In Natura”, parceria com Capinan, tudo-nada pode: ele “derruba casas”, tem “uma coisa que não tem no céu”.
A linha descendente de baixo do magistral samba composto com Kiko Dinucci, a faixa-título, emerge de um canto para Exu -é cavaquinho e baixo synth com reco-reco e atabaque a mostrar como “um amor faz sofrer” e “dois amô faz chorar”.
“Vivo dentro de um poema/ preso na minha canção”, canta Macalé em “A Arte de Não Morrer”, a segunda parceria com Capinan, que introduz arranjo de sopros a cargo de Antônio Neves, quem também orquestra a gafieira torta de “Você Vai Rir”, feita com Clima.
A voz intacta e imaculada de Maria Bethânia domina por completo o samba canção “Mistérios do Nosso Amor”, a primeira das duas parcerias com Ronaldo Bastos (a outra é “O amor Vem da Paz”), ambas arranjadas por Cristóvão Bastos. As guitarras dão um tempo para a delicadeza, já que “destino é o caminho de tudo que não tem solução”.
Estamos ainda em abril, mas já temos uma candidata favorita à melhor música popular brasileira lançada em 2023. A única de voz e violão do álbum, “Grãos de Açúcar”, parceria com Alice Coutinho, explica, aprofunda e transfigura os mistérios de “Dindi”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira.
Com primorosa construção, tanto formal como melódico-harmônica -o próprio violão de Macalé é extraído das profundezas do piano de Jobim-, a canção atinge a encruzilhada em que beleza e tristeza se abraçam, “como quem apaga meus versos: fica, Dindi”.
A imagem dos navios deixando a cidade, como grãos de açúcar “seguindo faróis” nasce antológica, e deságua nos quase frívolos “mas como poeta sou água com açúcar, Dindi”. “Mesmo que você não fale/ as vozes são muitas e enchem o ar”. Tanto para Jobim como para Macalé, Dindi não existe: “você não existe, Dindi”. Será?
“Amo Tanto”, com letra e música de Macalé, é um tesouro histórico. Trata-se da emocionante gravação de Nara Leão feita em 1966 com Copinha na flauta, Dino 7 Cordas ao violão e Canhoto no cavaquinho.
As guitarras voltam nos flashes de sexo na cidade, “A Foto do Amor” -parceria com Rodrigo Campos-, e seguem etéreas em “Pra um Novo Amor chegar” -feita com Guilherme Held e Fróes-, música na qual Macalé imprime um definitivo solo de violão.
E ainda tem Ná Ozzetti -segura e plena na missão de cantar a faixa que seria de Gal Costa, pairando sobre a guitarra solitária de Held- em “Simples Assim”, composta com Fróes.
Em época na qual os vapores amorosos são frequentemente barateados, a poesia musical de Jards Macalé ressurge inteira, intensa, imensa.
CORAÇÃO BIFURCADO
Avaliação Ótimo
Quando Lançamento na sexta (28) nas plataformas digitais
Autoria Jards Macalé
Produção Guilherme Held, Pedro Dantas, Rodrigo Campos e Thomas Harres
Direção Romulo Fróes
Gravadora Biscoito Fino
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Fonte: NotíciasAoMinuto